O Diário de um Eremita

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Prof. Chafic Jbeili - www.chafic.com.br

Em um lugar bem isolado e de difícil acesso vivia um ermitão. Sua rotina compreendia as atividades de uma vida simples, pacata, pautada na meditação diária e no aconselhamento daqueles que o procuravam em busca de respostas para todos os tipos de ansiedades e sofrimentos vivenciais.

Oriundo de um grande centro comercial, aquele eremita acumulava conhecimentos característicos de qualquer catedrático dedicado a assuntos específicos e universais. Sabia ler, escrever e dominava alguns idiomas. Também possuía pequena, mas significativa biblioteca particular, na qual dedicava parte de seu tempo, bem ao estilo misantrópico.

A misantropia é uma disposição pessoal de aversão ao ser humano ou à natureza humana. Há várias razões por que alguém se torna um ermitão e opta por um estilo de vida fundamentado na antipatia ao convívio social, entre estas razões estão: decepção por conflitos intensos com outras pessoas; perda de confiança no ser humano; agorafobia; práticas religiosas; jornada espiritual; saturação natural ao convívio social, além de desprezo pela condição humana entre outros tantas. Todas as pessoas têm diariamente seus momentos misantrópicos.

Certa vez uma jovem viajou dias para falar com o tal eremita. Depois de encontrá-lo, observou um pequeno caderno de capa verde que se encontrava em seu colo. Então, curiosa e sedenta de palavras de sabedoria pediu ao eremita para folheá-lo. Sem titubear, o ancião entregou o seu diário e impôs uma condição: que ela lesse apenas uma página e depois lhe explicasse o que entendeu. A jovem concordou e ansiosa abriu aleatoriamente uma página qualquer. A página continha a seguinte frase: “Hoje o pássaro voou, o sapo pulou, a formiga cortou a folha e a lagarta virou borboleta”. Decepcionada, a jovem fechou o diário, olhou para o eremita e ambos ficaram alguns minutos em contemplativo silêncio.

Depois de um tempo a jovem disse: “Não entendi nada demais, apenas coisas comuns, nada especial, nenhuma novidade, nenhuma sabedoria, nada que possa mudar a minha vida, apenas as coisas como elas são”. O eremita sorriu enquanto alisava sua longa barba e disse: “A monotonia ou a novidade das coisas não estão nas coisas em si, mas na sua história. Nas páginas anteriores estão registradas: como a ave quebrou a asa e os meses de agonia até neste dia quando conseguiu voar novamente; a perna mais curta do sapo e sua persistência; o afogamento da formiga e o livramento da lagarta que quase virou alimento de uma galinha”.

Moral da história:

Ninguém poderá considerar algo especial se não conhecer antes a história daquilo que contempla. A vida é assim, se alguém não consegue se contentar com as coisas simples e comuns da vida, buscando a parte especial de sua razão de ser, dificilmente este alguém vivenciará um dia ou um momento especial, mágico, pois o que torna algo ou alguém verdadeiramente especial é a sua história de vida e não a sua vivência mais imediata.

Sempre que eu olho para uma flor, um pássaro, uma formiga, uma pessoa estranha ou um aluno eu tento imaginar sua história de vida e daí em diante eu passo a tratá-los como seres vivos incrivelmente especiais e aquela observação deixa de ser comum, monótona, para ser mágica e intensa, transformando o meu olhar e o meu modo de compreender cada existência.

Tenho aprendido a viver vivendo um caso de amor, por assim dizer, com cada coisa ou pessoa que cruza o meu caminho. Não há nada de especial nisto, muito menos em mim, apenas um jeito diferente e um pouquinho mais ampliado de se ver a mesma coisa. Desta forma, vou vivendo a minha misantropia no meio de tudo e de todos; preenchendo as páginas de meu diário como um aprendiz de eremita urbano.

Abraços,
Prof. Chafic Jbeili
Psicanalista e Psicopedagogo
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