“Quem ama o feio, bonito lhe parece”. Sim, mas o difícil é amar o feio. Arthur Danto tem insistido que a arte não se relaciona mais com o belo. Talvez até ocorra o contrário, há objetos em galerias que visam arrancar todo tipo de expressão dos visitantes, menos a de prazer com belo. Umberto Eco, diferentemente, acredita que há, sim, um belo em nosso tempo, mas que não está mais na arte e sim na mídia, algo voltado para o que ele chama de “consumo”.
Hoje, mais do que em qualquer outra época, o que consideramos belo está profundamente ligado à nós mesmos. Nossa cultura atual é narcísica – certamente! Mas não devemos notar isso para colocar dedos em riste. É bom aqui apenas tomar distância tendo consciência histórica. O narcisismo é apenas o desdobramento do processo, marcadamente moderno, de surgimento do sujeito como peça importante de nossos discursos e de culto do indivíduo como elemento produtor e produto da política – exatamente uma das facetas da boa doutrina liberal. Isto tem empurrado o belo na direção de nós mesmos. É tão verdade isso que quando falamos em belo, para a maioria de nós, não vem à mente algo como uma obra arquitetônica ou uma paisagem, mas a figura do corpo humano. Aliás, nem mesmo o corpo humano representado no mundo das artes plásticas, mas o corpo, em nosso imaginário, como já se apresenta no mundo da mídia. Um mundo que se funde, é claro, com o mundo do consumo estratificado.
Belo somos nós. Nada pode ser propriamente belo, senão nós. Há inúmeras coisas no mundo que podemos dizer que são belas, é claro, mas parece que estamos realmente falando do belo quando estamos nos referindo à figura humana. Demorou mas, enfim, nossos corpos foram para o palco que criamos nos tempos modernos e, uma vez tendo chegado lá, são os donos da cena. Quando falamos em beleza, hoje, o que é chamado à mente tem a ver com a nossa silhueta humana. Nada há no mundo urbano de mais celebrado como o lugar do belo que os espaços em que há o desfile – em avenidas, nos shoppings, na TV e, agora, na Internet, que nada é senão a fusão disso tudo.
Essa centralidade do belo em nós mesmos deveria ser celebrada. Afinal, que bom que podemos, ao falar de beleza, falar de nós mesmos, não é verdade? Mas essa humanização do belo e, ao mesmo tempo, a democratização do belo e a socialização das nossas imagens têm seu preço. E esse preço não vem com a facilidade do crediário.
Belo somos nós e na riqueza de nossas divergências é que encontramos a pluralidade do belo. Ao mesmo tempo, junto dessa pluralidade, alguns elementos padronizados saem das catacumbas do inferno, como se viessem de bueiros das grandes avenidas para se incrustar nas vitrines, dar brilho às academias, criar palcos especiais de TV e colocar webcans em rotinas twitteiras. Junto do mundo plural, paradoxalmente a sombra do partido único levanta sua cabeça: a estética da silhueta malhada ou magra se impõe e espalha o horror à gordura.
De onde veio isso? Não era para esse mundo urbano e plural, que cultiva a profusão de tipos e tribos e que tem a Internet para ajudar nisso, ter varrido de vez qualquer ditadura da padronização? Sim! À primeira vista era isso que esperávamos. Ora, se assim é, de onde surgiu esse culto à beleza do corpo magro ou malhado? Não é essa padronização exatamente o oposto da liberdade com que somos banhados atualmente?
Talvez possamos tentar entender essa padronização vinda do inferno como sendo um aviso de nosso narcisismo contra uma outra padronização – esta sim efetiva. Pois, ao mesmo tempo em que colocamos no altar a magreza e/ou o corpo malhado, o que ocorre mesmo é que temos ficado disformes, gordos, relaxados e profundamente feios. Há muito gente gorda (e por isso feia) andando nas ruas. Então, como que se tivéssemos um sininho de aviso, nosso vocabulário se altera rapidamente e transforma a palavra “gorda” no único palavrão que realmente ofende uma mulher – e agora também um homem – na atualidade. Assim, no frigir dos ovos, antes que uma ditadura do corpo malhado ou magro o que se efetiva é uma reação contra a ditadura já existente, a que fez com que, na prática cotidiana, nos tornássemos essas pessoas que tiram fotos todos dias e, no entanto, são completamente não apresentáveis. Essa ditadura real é a da vida sob condições modernas: trabalho em ambientes fechados, comida de fast food ou em restaurantes do tipo self service piores que o fast food, horas de tensão no trânsito, consumo de alcool em excesso para “relaxar” do dia de trabalho etc.
Vamos ser sinceros. Podemos achar mulheres lindas e atrativas no Orkut. Podemos achar garotos belíssimos no Twitter. Mas tudo isso é limitado aos ultra jovens. No geral, o que temos é um festival de horror. E na vida cotidiana, afastados das câmeras semi-privadas de nossos PCs, esse festival de horror torna-se ainda mais macabro. Somos um bando de feios, ou seja, gordos. Formamos a escória do mundo. Então, como não podia deixar de ocorrer, nos transformamos em pessoas descontentes com o que somos corporalmente. Sendo que em nossos tempos nossa identidade é, em alto grau, corporal, somos pessoas pouco felizes . Nada em nós nos agrada. Mesmo quando temos êxito, parece que não podemos comemorar, e culpamos nossa silhueta. Caso tenhamos algum fracasso, então a própria culpa é do nosso peso, de nossa feiura. Temos agora, no mundo contemporâneo, um palco para cada um de nós. Mas, subir nele, todos os dias, tem sido uma tortura, uma vez que não nos sentimos aptos a nos mostrar ali. Por isso mesmo entramos sem qualquer piedade na primeira academia da esquina e fazemos nossa matrícula. Acreditando que iremos mesmo freqüentar aquilo. E então, ao final do mês, com o claro insucesso da academia sobre nós ou com o êxito falso e perigoso dos anabolizantes, marcamos a data da lipoaspiração. Ora, mas é a que podemos pagar e, assim, vamos para o perigo. E acabamos ficando por ali mesmo, na mesa cirúrgica, mortos. Morremos! Isso antes por sermos feios do que por vaidade excessiva.
Não morremos ou nos ralamos pelo culto a um padrão de beleza. Prejudicamo-
Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo
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